Via Luiz Arnaud no Babilônia – Foto de Felipe Endey (2010)
Esta carioca, escritora e musicista inspirou muitas montanhistas na década de 70. Filha de Janete Clair e Dias Gomes, usou seu talento (que já veio de berço) para escrever o belíssimo e premiado livro “Memória da Montanha” (leitura imperdível!). Conheçam esta grande e pioneiríssima montanhista!
Nasceu onde?
No Rio de Janeiro (RJ)
Está com quantos anos?
Nasci no dia 18 de junho de 1960. A conta é fácil…
Profissão?
Sou escritora e musicista. Publiquei quatorze livros (onze de poesia e três romances). E sou violoncelista da Orquestra Rio Camerata, além de tocar em grupos de câmara, gravações e dar aulas de cello.
Começou a escalar com que idade? Em que ano foi?
Comecei a fazer caminhadas com quatorze anos (1974) com uma turma de adolescentes da minha rua, na Lagoa. Subi tudo o que dava para ir caminhando. As montanhas da cidade, as de Teresópolis até as Agulhas Negras e Prateleiras. Mas comecei a escalar de fato com dezesseis anos. Portanto, em 1976.
Como foi?
A escalada adveio de uma grande queda que sofri na Agulhinha da Gávea, no Lance do Tião, aos dezesseis anos de idade. Seguia para a Pedra Bonita com meus amigos quando eu mesma dei a ideia de subirmos a Agulhinha, que há muito me atraía com sua predominância rochosa. Desviamos então o nosso caminho na direção da rocha, e através da mata chegamos à uma escalaminhada que nos levou, sem que suspeitássemos sequer, até a via Quinze de Novembro. Nosso “equipamento” resumia-se a uma corda de pescador de 20 metros, que um dos garotos sempre levava na mochila. Bem, é uma história longa… Mas, resumindo: ao chegarmos à base do Lance do Tião, este garoto que possuía muita destreza, escalou o trecho e jogou a corda para que subíssemos em fixa. E, claro, eu fui a primeira a tentar, amarrada à ponta pela cintura. Além de desconhecer técnicas básicas de escalada não havia desenvolvido ainda uma musculatura específica e, quando já estava quase chegando ao fim da parte mais crítica eu perdi as forças e caí os vinte metros da corda. Tentei agarrar-me a ela, o que não consegui, e fiquei pendurada na parede até o resgate que foi feito pelo meu amigo mesmo, numa manobra instintiva e arriscada, mas que me salvou a vida. Minhas mãos ficaram queimadas devido ao atrito com a corda e a pele descolou. Não preciso dizer que tudo aconteceu por causa da inexperiência, desconhecimento e irresponsabilidade de quatro jovens. Naquela época o esporte era pouco divulgado e eu sequer sabia da existência de clubes e técnicas de alpinismo.
Guiando a via Anta-Anta no Irmão Menor do Leblon – Foto de Giuseppe Pellegrini (1980)
e vias São Bento com Tarcísio Resende no PA – Foto de Vavá (atual)
Chegou a se associar a algum clube?
Por mais contraditório que possa parecer essa queda despertou em mim um grande desejo de escalar, subir encostas de pedra. Na verdade eu já levava comigo, sem o saber, essa vontade desde menina quando de minha casa na Rua Resedá, na Lagoa, olhava fascinada o Morro dos Cabritos e a minha mente viajava imaginando grandes subidas e aventuras no cume que, para mim era um grande mistério. Até hoje ainda acho que todos os cumes são mistérios, mesmo aqueles que já subi inúmeras vezes. Bem, tive que driblar a resistência categórica de meus pais para conseguir escalar, e o CEB convidou-nos a conhecer melhor o esporte e demonstrar que se feito seguindo as regras de segurança o risco seria bem menor. Assim, associei-me, com autorização de meus pais (era menor de idade), e iniciei a prática mais segura do montanhismo realizando vias clássicas tais como Passagem dos Olhos, face leste do P.A, CEPI, Olimpo e tantas outras.
E as conquistas, como começaram?
Pouco tempo depois, com quase dezessete anos conheci Giuseppe Pellegrini com quem comecei a escalar e namorar. Tudo ao mesmo tempo, rss..O pessoal do CEB me iniciou, mas Giuseppe me deu asas.E um dia, voltando de uma escalada nas Agulhas Negras (a Diagonal) eu vislumbrei minha primeira conquista. Estava lá, clara e intacta pedindo para ser subida. Uma linda parede no quarto rochoso da esquerda, que parecia não haver chaminés, mas um paredão em aderência, o que era inédito na época. Presumo que foi a primeira via aberta nas Agulhas Negras desviando das chaminés e só em agarras e aderência. Foi em 1977 e batizei de PEREDÃO ESTRELA (2 III) .Conquistar para mim era sinônimo de inventar.Se avistava uma parede em alguma montanha, que supostamente poderia ser virgem, ficava imaginando o traçado da escalada e assim atiçava o espírito conquistador do Pellegrini que logo topava e, junto comigo, planejava as investidas. E assim foram conquistadas as vias GAIVOTA (Pedra do Altar (3 IV), ANTARES no Morro dos Cabritos (3), ATLANTA no Pão de Açúcar (3 IIIsup) – realizado em apenas um dia por mim, Pellé e Waldo, CORINGA também no Pão de Açúcar (3 IV), ALIANÇA nas Agulhas Negras (4,V) – esta via consta como ano e autores desconhecidos porque não registramos e fica num paredão negativo próximo a via Normal-, SHERPA também nas Agulhas (III), e outras menores tais como ESTRADA (na “estrada de carro” quase chegando na trilha das Prateleiras) e ainda pequenas conquistas que fazíamos como treinamento e que também não constam em registros.
Na época houve alguma resistência de sua família em fazer um esporte tão arriscado e pouco praticado?
Hoje, ao me lembrar que ficava dias e dias incomunicável, sinto uma enorme pena de meus pais que sofriam um bocado sem notícias minhas quando eu saía para escalar por vezes em regiões mais remotas tais como Salinas, Agulhas ou até mesmo no Cerro Tronador (na Argentina). A princípio eles eram contra e até tentaram tirar aqueles ideais de aventura da minha cabeça, mas desistiram e aprenderam a conviver com a expectativa.
Você escreveu um livro, “Memórias da Montanha”, poderia falar um pouco sobre?
Resolvi escrever sobre um período que acho muito rico da minha vida quando praticava montanhismo quase que diariamente. A ideia foi comprada pela Ed. Ediouro, logo não poderia ser um livro técnico ou mesmo só contando escaladas. Então mesclei a minha história cotidiana de família, com as aventuras na montanha. E, na intenção de abranger uma faixa maior de leitores, a narrativa tem um caráter romanesco. É uma autobiografia romanceada. Esse livro ganhou o Prêmio da União Brasileira de Escritores.
O que acha desta “invasão” de mulheres na montanha?
A “invasão” é um movimento natural feminino que ocorre não somente no montanhismo, mas em todas as áreas. É um reflexo do espaço conquistado pelas mulheres em setores que eram predominantemente masculinos. E não foi fácil praticar um esporte onde as mulheres eram consideradas frágeis criaturas incapazes de escalar como os homens. Acontece que quando os lances exigiam leveza e flexibilidade, a mulher levava a melhor, passava com mais facilidade. Fato esse que começou a causar espanto por parte dos machões que, muitas vezes, torciam o nariz diante da presença feminina em uma escalada. Hoje, vejo com alegria que isso faz parte do passado.
Gostaria de deixar um recado pra esta mulherada?
Sejam espontâneas e sonhadoras. A montanha dos nossos sonhos mora dentro de nós, e para conquistá-la haveremos de ser leves, determinadas e humildes diante de algo que sempre será maior do que nossa pequena delicadeza.
Entrevista concedida ao Site Mulheres na Montanha
Feita por Rosane Camargo