Foto do Elbrus da estrada para o Camp Base 1
Rosiane de Freitas é montanhista federada a FEMERJ associada ao CEB (Clube Excursionista Brasileiro). Pratica montanhismo por lazer, mas fez cursos diversos e gosta de atividades pesadas e de logística complexa, tendo feito as principais travessias brasileiras, como Serra Fina em 2 dias, e montanhas, como o Pico da Neblina, ponto culminante brasileiro, com acampamentos móveis pela floresta amazônica. Possui experiência em alta montanha, onde já fez cume no Aconcagua, com seus 6.942m. E, claro, faz parte do movimento de escaladoras brasileiras “Mulheres na Montanha”!!
“Spasiba” (obrigado) era uma das poucas palavras que eu sabia em russo ao chegar no aeroporto da cidade Mineralnye Vody, no interior da Rússia (porta de entrada para o montanhismo no Cáucaso russo), e é a que faço questão de usar agora para expressar todo meu agradecimento por mais uma grande experiência em alta-montanha que vivenciei ao subir o Monte Elbrus em julho de 2012! Antes de ser um modelo do que deve ser feito e seguido, faço agora apenas um relato do que aconteceu e de como situações adversas foram enfrentadas…
O Monte Elbrus é um vulcão adormecido e coberto por ‘neve eterna’, situado no lado russo da cordilheira do Cáucaso e possuindo dois cumes, o Oeste (ponto culminante da Europa, com seus 5.642m) e o Leste (um pouco menor, com seus 5.621m). Duas são as rotas convencionalmente usadas: uma subindo pela face Sul e outra pela face Norte. A rota mais conhecida e usada é pela face Sul, que possui infraestrutura até cerca de 4.100m (transporte, alojamentos com geradores, beliches, etc) e costuma-se contratar serviços diversos para facilitar ao máximo a subida… subir de “snow cat” (carro robusto com esteiras para neve) até os 4.900m, carregador até o cume, etc, mas aí foge do esquema que os montanhistas de fato buscam. Vem daí a fama de ser ‘fácil’ subir o Elbrus… mesmo assim, o dia do ataque ao cume pode ter cerca de mil metros de ascensão com uso (e peso) de equipamento técnico de montanha no gelo!
Aclimatação – Simulando ataque ao cume
No meu caso, subi pela face Norte que é por onde se tem o esquema de montanhismo mais clássico (somente acampamentos de montanha). Fiz uma rota diferente das convencionais, com caminhada de aproximação pelo norte, subindo o Elbrus pela face Norte, fazendo o cume Oeste e descendo, então, pela face Sul. Foram sete dias desde o primeiro dia na montanha até o dia do cume e descida total, com apenas dois acampamentos base (o primeiro a pouco mais de 2.500m e o segundo a quase 3.800m).
O dia de ataque ao cume tem quase 2.000m de desnível… parti de menos de 3.800m para chegar aos 5.642m do cume Oeste (isto sem contar os muitos metros adicionais para evitar os subidões diretos e para contornar o cume Leste). Pela primeira vez resolvi ir sozinha, sem um parceiro previamente conhecido e, assim, fiz contato direto com uma agência russa, compondo um grupo de nove pessoas para as atividades dos dias que antecederiam o cume e um parceiro-guia para que no dia de cume pudesse fazer comigo a rota alternativa que tinha planejado.
Clique aqui para ver alguns momentos desta grande aventura
Clique aqui para assistir ao vídeo da chegada ao cume (perdoem a qualidade ruim da filmagem):
Nos sete dias na montanha, subimos duas vezes do acampamento base 1 para o 2 (1.300m entre os acampamentos), tanto para aclimatação quanto para ‘portear’ nosso material (barraca, equipos, comida, etc… haja peso!!). Antes disso, fizemos aclimatação por outras montanhas menores do Cáucaso no entorno do Elbrus e também fui a um tradicional (e muito bonito) point de escalada chamada de “Mushroom Stones” (pedras de cogumelo), justamente devido ao formato dos boulders existentes, que fica a uns 3.100m.
No segundo acampamento base, a quase 3.800m, fizemos aclimatação até 4.500m em um dia (simulando o dia de ataque, pois partimos de madrugada e com todo o equipo, mas, com menos de 1.000m de ascensão neste dia… o trecho inicial é um dos mais delicados, ainda mais no escuro, com trechos perigosos no gelo (gelo fino/instável, gretas, pontes de gelo, etc), onde precisamos ir encordados por segurança) e descanso no outro dia (com caminhadas técnicas no gelo, contornando parte da montanha), antes do dia de ataque ao cume. A partir deste acampamento, o uso do equipamento de gelo é constante (botas reforçadas com grampos de gelo, machado de gelo, óculos c/ proteção, etc).
Os dias por lá foram ensolarados, lindos e de muuuuito calor (inacreditavelmente quente… pior que extremo de verão carioca, parecido com extremo de linha do Equador!!)…. isto até a tarde da véspera do ataque ao cume…
Elbrus 2012 – No cume oeste com guia parceiro/Foto cumes leste e oeste na chegada ao Camp Base 2 – 3800m
No dia de ataque ao cume, partimos de madrugada e após 13h (treze horas e cerca de 2.000m de subida!!) cheguei ao cume Oeste, em um dia de vento forte, leve nevasca, dia nublado e frio. Fiz parte de um grupo até o dia do ataque, mas, fui a única a partir para o cume Oeste (os outros foram para o cume Leste, mais perto e um pouco menor). Para isto contei com um parceiro, guia de montanha de lá. Infelizmente o tempo mudou na tarde do dia anterior e piorou na tarde do dia do ataque (o que era previsto, mas com maior probabilidade para o dia seguinte… e apesar da ciência de que isto seria possível, não tem como este fato não nos abalar um pouco, pois os dias e noites até então tinham sido perfeitos!!).
Ressalto que foi um dos meus maiores desafios em montanha, apesar de não ter sido o local de clima mais agressivo, nem o mais alto e tampouco o mais difícil em que já estive. O desafio maior foi enfrentar pela primeira vez o ‘mal de altitude’ (não o sintoma clássico de dor-de-cabeça intensa, mas com náuseas/ânsia de vômito e mal estar), seguido de outros percalços, logo no início do ataque ao cume… no dia do ataque ao cume, ‘botei pra fora’ tudo o que comi e tudo mais, por umas três vezes (quando acontecia isto melhorava muito). Levanto algumas suposições para isto ter ocorrido e faço questão de apresentar aqui!
Logo na partida eu e meu parceiro-guia pisamos em gelo fino e colocamos uma das pernas em água congelante, ficando com tudo encharcado. Pensei ter terminado aí minha tentativa de cume, mas, avaliamos a situação e decidimos continuar (isto significou uma parada inicial de uns 30min, caminhada muito lenta no início, pois minha perna direita ‘teimava em não me obedecer’ e sentia algumas câimbras… mas, mexia muito bem os dedos e não sentia os pés congelados (e verifiquei constantemente isto). O que contou muito para eu aceitar com responsabilidade continuar subir é que já sabia de relatos assim e também o meu parceiro-guia estava com o mesmo problema (e frisou que isto não era tão incomum, que teríamos que aguentar um pouco o sufoco, mas, andando nos aqueceríamos e que ao nascer do sol tudo se resolveria de vez… a mesma coisa para os sintomas de mal de montanha… o fato de botar tudo pra fora também não era incomum e outros com o mesmo problema chegaram a fazer cume, mas sabia que teria que ser forte o suficiente para aguentar o abalo principalmente emocional). Eu mesma avaliava minha situação todo o tempo, e me conheço bem, então decidi continuar. Creio que o fato de estar com a perna gelada e com dificuldades de andar, me fez desprender uma energia e esforço ainda maior na subida e, então, em determinado momento comecei a passar mal e sentir enjoos, tendo que colocar tudo pra fora. E assim foi até metade da subida!! Outros fatores que com certeza colaboraram para isto foi o fato de não estar com o condicionamento físico ‘afiado’ como em outras vezes e também o fato de ter ido para a montanha carregada de preocupações sobre o que se passava aqui fora, questões de trabalho, etc.
Com certeza estes três fatores contribuíram muito para minha primeira vez de mal de altitude! Muitas lições e aprendizados eu tirei de tudo isto. Além dos fatos acima, pude comprovar com certeza que se me falta condicionamento físico, me sobra resistência, determinação e ‘psicológico’!! Desta vez subi na ‘raça e na coragem’!! E o fato de ser montanhista, ter feito cursos técnicos e ter experiência em alta montanha, foi preponderante em todo o processo (eu sabia o que me esperava, estava confortável na medida do possível com o ambiente e equipos, sabia o que fazer, como usar, etc, e não dependia totalmente do meu parceiro-guia). Mas a subida foi sofrida demais desta vez…
No último terço da subida, já quase 10h da manhã, apesar de muito cansada e debilitada, me sentia um tanto melhor e principalmente mentalmente muito focada e determinada em conseguir meu intento.
No cume oeste / Foto com grupo de russos e suecos
Assim, ao chegarmos no ponto de decisão, se partiríamos para o cume Leste (o menor, bem a nossa frente e de subida direta e sem complicações no percurso, ‘apenas’ o subidão final) ou se manteríamos o planejado e iríamos para o cume Oeste, nem pestanejei e com convicção reafirmei que queria tentar o cume Oeste como planejado, e que arcaria com a consequência de não conseguirmos (e aí ficar sem nenhum cume), isto mesmo após todos os perrengues relatados.
Surpreendentemente, apesar do atraso frente ao ocorrido e minha progressão lenta a partir de então, meu tempo de subida estava dentro do esperado, o que respaldou minha decisão. Partimos, contornando a base do cume Leste (ôh caminho ‘lascado’… neve fofa onde afundávamos até a altura do joelho, em uma trilha que lembra o “Gran Acarreo” do Aconcagua, onde temos que atravessar um paredão com inclinação acentuada… aí fizemos valer o peso carregado do ice-axe e também fomos os dois encordados!! A partir daí, o tempo foi mudando mais fortemente e um vento forte nos assolou, nos assustando, pois justamente foi em uma das partes mais complicadas da subida… cogitamos seriamente parar e descer (no ponto em que estávamos, o mais adequado era acabar o contorno e descer pela face Sul ao invés de retornarmos). Um vazio me abateu quando conversamos e tinha total consciência de que o mais responsável era descermos. Mas, ao chegarmos na base do cume Oeste, tinha um grupo de resgate com uma barraca montada… uma providência divina! Fomos até eles, conversamos sobre o tempo, condições, se dava para subir, esperamos um pouco, e com a melhora do vento e o aval deles, partimos para cima (isto realmente me tranquilizou… nesta hora, o parceiro-guia não queria voltar atrás e só pensava em descer, mas, isto porque para ele seria apenas mais uma vez no cume e não estava a fim de sofrer à toa… novamente, aí faz diferença você ter experiência, se conhecer nestas situações e ter se embasado sobre a montanha, percurso, etc, além da segurança de ter especialistas por perto e que deram o aval… e com certeza ser turrona como eu, quando acho que tenho razão e quero muito alguma coisa!!). Venceu minha argumentação e determinação… subimos!
Chegamos no cume após quase 13h, tempo nublado, leve nevasca, vento moderado, e eu exausta… mas, muito feliz e com aquela sensação indescritível de realização e superação de seus próprios limites!! Mas ainda tinha a descida… que foi bem tranquila (acabamos com dia bem claro e tempo bom), mas, muito, muito cansativa e eu literalmente um trapo humano… descia ‘capengando’, porém inebriada e com um sorriso de satisfação que só a gente que sobe montanhas ‘porque elas estão lá para serem subidas’, sabe o que significa!!
É isto. ‘Viva’ as montanhas… Спасибо, Россия!!